Anteontem, 28 de maio, o Congresso derrubou o veto do presidente da República e proibiu a saída temporária do preso em duas situações: visita à família e participação em atividades que auxiliem no retorno social, mantendo o benefício apenas para fins de estudo no ensino médio, supletivo ou cursos profissionalizantes.

O instituto, apelidado de “saidinha”, foi perdendo sua razão de ser ao longo dos seus quase 40 anos de vigência, devido à desídia do Poder Executivo quanto à questão carcerária, relegada a um segundo plano pela retórica demagógica da classe política, até que os presídios, enfim, se transformassem em bases operacionais de organizações criminosas. Aos poucos, com o passar do tempo, a execução da pena foi se distanciando da ideia original de ressocialização gradual do sentenciado.

O processo de reinserção social do delinquente é fundamental para a redução da reincidência, razão pela qual o condenado por crimes graves deve passar por um período inicial de depuração no regime fechado, em estabelecimentos de segurança máxima ou média, para então, progredir para um estágio mais brando, no qual a pena será cumprida em colônia penal, ambiente menos hostil que o presídio, com alojamentos coletivos no lugar de celas.

Na sequência, rumo à readaptação, o preso seguiria para o regime aberto, em liberdade desvigiada durante o dia, sob a condição de trabalhar, recolhendo-se à noite e nos dias de folga a um estabelecimento penal denominado Casa do Albergado.

A Lei 7.210/84, logo em seu artigo 1º, deixava clara essa ideia: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e internado”.

A finalidade da pena não é apenas proteger a sociedade, prevenindo com força dissuasória a prática de crimes mediante ameaça de punição (prevenção geral) e segregar o delinquente do convívio social. Sua função legal é também a de reintegrar o delinquente à coletividade. A inércia da administração pública, no entanto, foi solapando, ao longo de quatro décadas, a realidade projetada pelo legislador.

Solução à brasileira

No que toca à saída temporária, o benefício foi criado com o intuito de preparar o preso em regime semiaberto para ingressar no aberto, exercitando seu senso de responsabilidade e autodisciplina. Consiste em saídas rápidas de sete dias, cinco vezes ao ano, pelas quais o preso vai aos poucos se readaptando ao convívio social. Evidentemente, nenhum sistema tem 100% de eficiência, mas o índice daqueles que burlavam o instituto e deixavam de retornar era de pouca significância — cerca de 6%, de acordo com dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), ano 2023.

Ocorre que a saída temporária começou a ser concedida a presos fisicamente no regime fechado, ainda no ambiente promíscuo do cárcere. Isso porque não há vaga suficiente para todos aqueles que obtêm juridicamente o direito ao regime semiaberto, dando origem a uma solução à brasileira: o sujeito passa juridicamente ao semiaberto, mas continua de fato, preso no fechado, aguardando abertura de vaga na colônia penal. A readaptação social pretendida pelos especialistas não funcionou, mantendo elevados os índices de reincidência. O tempo se encarregou de mostrar que tudo não passou de uma idílica pretensão de transformar nosso sistema penitenciário em uma Suíça carcerária.

Tinta no papel

A Lei de Execução Penal previu a individualização do cumprimento da pena de acordo com os antecedentes e a personalidade do condenado (artigo 5º), aferida mediante exame criminológico (artigo 8º), assegurou-lhe direito à assistência material, mediante fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas (artigos 12 e 13), à saúde, com atendimento médico, farmacêutico e odontológico (artigo 14), jurídica (artigos 15 e 16), educacional (artigos 17 a 21-A), social (artigos 22 e 23), religiosa (artigo 24) e ao egresso (artigo 25 a 27).

Em seu artigo 112, permitiu o cumprimento da pena de forma progressiva, com a passagem ao regime menos rigoroso, até chegar ao aberto, bem como a possibilidade de descontar um dia de pena a cada três de trabalho, por meio do instituto da remição (artigo 126). Além da progressão de regime, admitiu o livramento condicional (131) e vários outros benefícios, dentre os quais a saída temporária. Tudo visando à eliminação da reincidência.

Assim é que, em seu artigo 122, a LEP previu o benefício da saída temporária para presos não perigosos e em regime semiaberto, no qual o condenado deveria ter o direito de cumprir sua pena em uma colônia penal agrícola, industrial ou similar (CP, artigo 35, § 1º), estruturas distintas e bem mais amenas do que o cárcere. Não cabe aqui, necessariamente, uma crítica ao legislador, que procurou apenas dar cumprimento ao que determina nossa CF, que assegura ao preso o respeito à sua integridade física e moral (CF, artigo 5º, XIX) e a preservação de todos os direitos não atingidos pela sentença condenatória.

O problema foi gerado pela falta de eficiência do Poder Executivo. A esperançosa Lei de Execução Penal chegou até a fixar o utópico prazo de seis meses para a implementação de todos os projetos e construções necessários a dar cumprimento aos dispositivos previstos na lei (LEP, artigo 203 e §§). Evidentemente, tudo não passou de tinta no papel.

Perdida nesse emaranhado de regras estava a saída temporária. Ao estatuí-la, o legislador pressupunha um preso com boa conduta carcerária, sem sinais de periculosidade, já aprovado por um exame criminológico eficiente e célere e manifestação favorável do Ministério Público, e que já se encontrasse em um ambiente bem mais ameno do que um presídio, com vigilância moderada e alojamentos coletivos. Nessas condições, fazia todo o sentido autorizar saídas temporárias para auxiliar a ressocialização do indivíduo. No entanto, com a crise de vagas no sistema semiaberto, muitos presos com mérito para acessá-lo, permaneceram no fechado, ambiente dominado pelas organizações criminosas. É claro que assim, o instituto não iria produzir os mesmos resultados.

Revogação e natureza do benefício

O Congresso Nacional decidiu então, como se diz, matar o boi para eliminar o carrapato e revogou o benefício. A questão que se coloca agora, é a seguinte: como fica a situação dos presos em regime semiaberto que cometeram crimes antes da extinção da saída temporária?

Para quem considera a saída temporária um instituto de natureza processual, a incidência da proibição será imediata e alcançará todos os presos em regime semiaberto, mesmo que as infrações penais tenham sido praticadas antes da vigência da proibição. As normas processuais têm sua incidência regulada pelo artigo 2º do CPP, segundo o qual “a lei processual aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”.

Sua incidência é imediata, de modo que o juiz, ao decidir, aplicará a regra que estiver em vigor na data em que for proferir sua decisão (tempus regit actum), sendo irrelevante se ela é mais severa ou se o crime foi praticado antes de sua vigência. Incide aquilo que estiver valendo no dia.

“Processual é a norma que repercute apenas no processo, sem respingar na pretensão punitiva. É o caso das regras que disciplinam a prisão provisória, proibindo a concessão de fiança ou de liberdade provisória para determinados crimes, ampliando o prazo da prisão temporária ou obrigando o condenado a recolher-se à prisão para poder apelar da sentença condenatória. Embora haja restrição o jus libertatis, o encarceramento se impõe por uma necessidade ou conveniência do processo, e não devido a um aumento na satisfação do direito de punir do Estado. Se o sujeito vai responder preso ou solto ao processo isso não diz respeito à pretensão punitiva, até porque tal tempo será detraído da futura execução (CP, art. 42). Desse modo, se um agente comete um crime antes da entrada em vigor de uma lei que proíbe a liberdade provisória, caso venha a ser preso, não poderá ser solto, uma vez que a norma, por ser processual, tem incidência imediata, alcançando os fatos praticados anteriormente, mesmo que prejudique o agente.” [1]

Somente será considerada norma processual aquela que tiver relação com as exigências do processo, sem significar aumento ou redução da intensidade de satisfação da pretensão punitiva [2]. No que diz respeito, por exemplo, à regra do regime disciplinar diferenciado, previsto no artigo 52 da LEP, o entendimento é o de que ele tem caráter processual, uma vez que se trata de um incidente relativo à disciplina interna dos presídios.

Deste modo, qualquer preso, definitivo ou provisório, nacional ou estrangeiro, que colocar em risco a ordem ou disciplina interna do presídio, poderá se sujeitar às suas regras mais severas, mesmo que o crime pelo qual cumpre pena tenha sido praticado antes da decisão. As regras processuais não se submetem à proibição de retroatividade in pejus da CF, artigo 5º, XL. Se fosse processual, a lei que extinguiu a saída temporária teria incidência imediata e se aplicaria a todos os casos, mesmo que relativos a crimes anteriores à extinção do benefício. Mas a saída temporária não é um instituto de natureza processual.

Por outro lado, será de caráter penal toda norma que criar, ampliar, reduzir ou extinguir a pretensão punitiva estatal, tornando mais intensa ou branda sua satisfação. Leis que tipificam novos crimes (normas incriminadoras) têm natureza penal, pois estão criando para Estado o poder de punir tais condutas, o que significa o surgimento de uma nova pretensão punitiva para essas hipóteses. Leis que aumentam as penas ou impõem novos obstáculos para o condenado cumprir sua pena também possuem natureza penal, pois restringem o direito de liberdade e intensificam o direito de punir.

Do mesmo modo, tem natureza penal as que proíbem a concessão de anistia, graça ou indulto, ou as que aumentam o prazo prescricional, pois protegem a pretensão punitiva, tornando mais difícil a sua extinção. Em sentido oposto, normas que extinguem crimes ou que criam novas causas extintivas da punibilidade, possuem natureza penal pois reduzem o poder de punir do Estado.

“As normas que tratam de execução de pena, como, por exemplo, aquelas que proíbem a progressão de regime, dificultam a obtenção do livramento condicional ou sursis, permitem ou vedam a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos e multa têm inequivocamente natureza penal, já que afetam a satisfação do direito de punir do Estado. Com efeito, o cumprimento de uma pena sem livramento condicional, por exemplo, intensifica o grau de aflição do condenado e, em contrapartida, o de satisfação do poder punitivo estatal. Sendo penal a sua natureza, tais normas se submetem ao princípio da irretroatividade in pejus.” [3]

Retroatividade

Leis que reduzem penas, trazem novas atenuantes ou causas de diminuição, facilitam a progressão de regime, a suspensão condicional da pena e o livramento condicional têm natureza penal, pois reduzem a pujança, a potência do poder de punir [4]. As normas de Direito Penal não podem retroagir e alcançar crimes cometidos antes de sua entrada em vigor quando forem prejudiciais ao acusado. É o princípio da irretroatividade da lei penal in pejus, insculpido no artigo 5º, XL, da CF: “A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.

A saída temporária é um instituto de natureza penal, não podendo ser considerada uma norma relativa à disciplina interna do presídio, mas uma atenuação na intensidade do poder de punir estatal, do mesmo modo que as regras que estabelecem o livramento condicional, a progressão de regime, a remição, a anistia, o indulto, a graça ou qualquer outro instituto que reduza o potencial punitivo do Estado. A extinção da saída temporária, tendo natureza penal, submete-se à proibição de retroagir tendo em vista seu caráter inequivocamente mais severo.

Como toda e qualquer outra norma que reduz a intensidade do direito de punir (jus puniendi), o direito de sair durante o cumprimento da pena para visitar a família ou qualquer outra atividade, é uma redução no poder de punição do Estado, porque torna a execução da pena mais branda para o condenado. Não se confunde com a imposição do regime disciplinar diferenciado, porque a saída temporária é um direito assegurado previamente como um direito do sentenciado que preenche seus requisitos a ter, ainda que por breve período de tempo, uma atenuação na submissão ao poder de punir do Estado.

Trata-se de norma que atenua a execução da pena privativa de liberdade. Por essa razão, todos os condenados pela prática de crimes anteriores ao início da vigência da extinção da saída temporária continuarão a ter direito à saída temporária nos mesmos moldes do artigo 122 e §§ da Lei de Execução Penal, sendo inconstitucional, por ofensa ao artigo 5º, XL, da CF, permitir a retroatividade da proibição em prejuízo do condenado. A vedação vale para somente para os crimes que vierem a ser cometidos a partir da vigência da regra proibitiva.

Como ensina Jeschek, o fundamento básico e decisivo para que uma lei de natureza penal não prejudique situações anteriores já consolidadas, no caso, infrações penais cometidas antes de sua edição, é a segurança jurídica do cidadão, o qual deve ser protegido contra a aplicação retroativa de posteriores alterações unilaterais do Estado, destinadas a punir com maior rigor comportamentos realizados sob a égide de regime jurídico menos severo:

“uno de los princípios rectores del Estado de Derecho es el de que las normas que regulan de forma concluyente um supuesto de hecho, no puedan modificarse posteriormente em prejuicio de la situación jurídica del ciudadano. Más importantel es la razón especificamente penal de que no pueden promulgarse leyes ad hoc que facilmente pueden estar influenciadas por la commoción que produce la comisión de um delito concreto.” [5]

A CF, em seu artigo 5º, XXXIX, consagrou o princípio da legalidade, composto de reserva legal e anterioridade, afirmando que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Se a pena deve ser prévia, todos os direitos a ela relativos deverão também estar previamente definidos em lei, de modo que nenhum deles poderá ser suprimido ou restringido após a prática do delito, pois, neste caso, a pena passaria a ser posterior ao crime. A saída temporária é direito do condenado assegurado em lei, e não regra de procedimento da execução penal. Como norma de direito material não poderá retroagir para prejudicar o condenado.

  • [1] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. SP: Saraiva. 31ª ed. 2024, p. 40.
  • [2] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. SP: Saraiva. 31ª ed. 2024, p. 39/41.
  • [3] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal cit, p. 44/45
  • [4] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – Parte Geral. SP: Saraiva, 28ª ed, 2024 pg. 43.
  • [5] JECHECK, Hans-Herinrich. Tratado de Derecho Penal, – Parte General, v. Primero. Traducción y adiciones de Derecho español por S. Mir Puig y F.Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, Casa Editorial, S.A.  1978, p.184.

AUTOR: Fernando Capez é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

 

FONTE: MS NOTICIAS