Alvo de embates políticos e deixado em segundo plano nos últimos anos, o Mais Médicos volta a ganhar impulso com novos editais previstos para os próximos meses e aposta em incentivos financeiros para atrair profissionais.
Para especialistas e gestores ouvidos pela Folha, a medida ajuda a atenuar o “apagão” de vagas registrado no programa, mas ainda deve exigir novas ações para resolver o problema da fixação de médicos a longo prazo em áreas mais distantes ou tidas como mais vulneráveis.
Anunciada no último dia 20, a nova versão do programa prevê abertura de 15 mil vagas, sendo 5.000 em abril, financiadas pelo Ministério da Saúde, e 10 mil até o fim do ano, custeadas pelos municípios.
Atualmente, o Mais Médicos tem 8.366 vagas preenchidas –menos de metade das 18.240 previstas nos últimos anos.
A taxa menor reflete parte da trajetória do programa na última década.
Criado em 2013 sob protesto de entidades médicas, o programa ficou marcado inicialmente por episódios de xenofobia contra cubanos e se tornou alvo frequente de embates políticos. Aos poucos, também registrou melhoria de indicadores de saúde e passou a ser defendido sobretudo por prefeitos.
Já nos anos mais recentes, teve idas e vindas: passou a ser reduzido, depois ganhou sobrevida na pandemia e, por fim, acabou relegado a segundo plano em meio à estruturação do Médicos pelo Brasil.
Hoje, 5.648 médicos atuam neste outro programa, que chegou a ser anunciado como substituto do Mais Médicos na gestão de Jair Bolsonaro ainda em 2019, mas teve editais apenas em 2022. Agora, o governo atual justifica a retomada na aposta no Mais Médicos diante do que aponta como dificuldade do Médicos pelo Brasil em manter médicos em áreas mais vulneráveis.
Um desafio, agora, que se volta novamente ao Mais Médicos.
Na nova roupagem, o programa deve manter a prioridade de adesão a brasileiros, diz a Saúde. Caso as vagas não sejam ocupadas, devem ser direcionadas a brasileiros formados no exterior e estrangeiros. Não haverá, porém, a cooperação com a Opas (Organização Pan-Americana de Saúde) para vinda de médicos cubanos.
Para estimular a adesão, o governo aposta em novas medidas, como pagamento de incentivos a médicos que permanecerem no programa por mais de três anos (o prazo será de quatro anos, prorrogáveis), aos que atuarem em áreas mais carentes e aos formados com auxílio do Fies (financiamento estudantil).
Na prática, a medida aponta para incentivos que podem chegar a R$ 118 mil para médicos que ficarem quatro anos em áreas mais vulneráveis ou até R$ 475 mil no caso de médicos formados no Fies atuando nestes locais. Questionada, porém, a Saúde não detalhou quais e quantas cidades estariam no critério de maior vulnerabilidade.
Lígia Bahia, professora da UFRJ, diz que o fato de o Mais Médicos ter se mantido como principal iniciativa de provimento de médicos nos últimos anos mostra que ele “veio para ficar”.
“Isso mostra a importância dessa política. Mas a pergunta é: veio para ficar de maneira precária? Será sempre assim, com bolsistas e intercambistas?”, questiona. “Com a precarização do vínculo trabalhista, corremos o risco de ter uma precarização na própria qualidade do atendimento.”
Para ela, o programa precisa de um “segundo passo”. “Nele, seria importante vincular esse processo com universidades públicas de excelência para garantir que não haja essa precarização”, sugere ela, que aponta parcerias em pesquisas e formação como caminho.
Preocupação semelhante tem Fernando Aith, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP. Para ele, a retomada é positiva e a oferta de incentivos pode ajudar a atrair profissionais, mas não resolve a fixação a longo prazo ou de forma definitiva, fator que é influenciado também pelas condições de trabalho e estrutura, afirma.
“O salário que estão oferecendo e as indenizações podem parecer altas para o salário médio no Brasil, mas há médico que se forma e faz plantões e consegue R$ 30 mil por mês. Por que então iria para a Amazônia? Temos que ver como isso vai funcionar no mercado médico.”
Nos últimos anos, a alta taxa de desistências em algumas regiões era uma das principais dificuldades do Mais Médicos.
Dados obtidos pela Folha via Lei de Acesso à Informação, e atualizados em janeiro, mostram que o tempo médio de permanência no programa é de 1 ano e 8 meses para médicos com registro no Brasil e de 2 anos e 7 meses para brasileiros formados no exterior.
Em alguns casos, não chega a isso. Entre 2013 e 2017, por exemplo, cerca de 20% dos brasileiros que ingressavam no programa desistiam em até um ano. Até então, o contrato era de três anos.
Felipe Proenço, secretário-adjunto de atenção primária do Ministério da Saúde, diz que, em estudo para retomada do programa, a pasta identificou três motivos principais que levavam médicos a não permanecerem. O principal era busca por formação, como residência –motivo que levava à saída de 40% dos profissionais.
Outros eram questões familiares e ofertas no mercado de trabalho.
Segundo ele, diante desse cenário, a nova versão do Mais Médicos deve ampliar ofertas de formação, incluindo também possibilidade de mestrado, entre outras. A pasta ainda não detalhou a medida. Em outra frente, a busca foi por ampliar a cobertura de licença-maternidade e paternidade.
Já a previsão de incentivos financeiros ocorreu como estratégia frente a outras ofertas do mercado de trabalho, o que pode ser atrativo especialmente para médicos formados com Fies, diz o secretário-adjunto. A pasta calcula que haja 15 mil neste grupo nos últimos três anos.
“Isso nos leva a entender que há possibilidade grande de atrair mais médicos com registro no Brasil”, afirma Proenço.
Para Lígia Giovanella, coordenadora da rede de pesquisa em atenção primária da Abrasco, a oferta de novos incentivos mostra preocupação em garantir a presença de profissionais. “É certo que a fixação em áreas remotas é um desafio em todo o mundo. Às vezes, não consegue fixar, mas consegue ter continuidade do cuidado.”
A retomada do programa, porém, gerou críticas nas redes sociais por alguns médicos, que questionam o vínculo precário e o valor da bolsa frente à do Médicos pelo Brasil (de R$ 15.750, contra R$ 12.386 no Mais Médicos), que previa contrato CLT após dois anos.
Proenço, no entanto, diz que a soma de auxílios e incentivo a quem vai a local vulnerável torna o novo programa mais atrativo a quem permanecer no posto.
Os embates continuam. Nos últimos dias, entidades médicas voltaram a questionar a abertura de vagas para médicos sem revalidação do diploma e prometeram recorrer ao Congresso para mudanças na medida provisória que traz as regras do programa.
A possibilidade de entrada de médicos brasileiros formados no exterior, porém, foi comemorada por alguns gestores de saúde.
Para Franmartony Firmo, presidente do Cosems-AM, que reúne secretários municipais de saúde do Amazonas, a retomada do programa pode ajudar a diminuir o déficit de profissionais.
“Médico com CRM não conseguimos colocar em todas as regiões do estado, mas os brasileiros formados no exterior, sim. Por isso acredito que agora teremos médicos como já teve no primeiro Mais Médicos.”
Estimativa do conselho aponta falta de 400 médicos no estado. Em Maués, onde é secretário, ele diz aguardar a reposição de três médicos. Por enquanto, profissionais fazem um rodízio entre unidades de saúde para garantir o atendimento.
“Muitos médicos até se inscrevem, mas não se apresentam, ou desistem em alguns meses pelas condições de cidade de interior.”
Segundo ele, parte das últimas vagas abertas era de médicos cubanos que passaram no Revalida. “Passaram e foram embora. Até brinquei que passaram e viraram brasileiros, e riram. Ninguém queria ficar no município”, relata.

O QUE MUDA NO MAIS MÉDICOS

Editais 
Como era: embora ainda fosse o principal programa de provimento, o Mais Médicos vinha sendo deixado em segundo plano em meio a substituição para Médicos pelo Brasil
Como fica: programa volta a ter editais. Ideia é que seja lançado edital com 5.000 vagas até abril, e outras 10 mil vagas até o fim deste ano. Valor da bolsa será de R$ 12,4 mil, com previsão de incentivos financeiros
Tempo de participação no programa 
Como era: três anos, prorrogável por igual período
Como fica: quatro anos, prorrogável por igual período
Oferta de incentivos financeiros 
Como era: programa dava auxílio-deslocamento, entre outros
Como fica: mantém auxílios e passa a trazer outros incentivos financeiros
– Incentivo de fixação (ao permanecer ao menos três anos): modelo em que profissional poderá receber adicional de 10% a 20% da soma total das bolsas de todo o período em que esteve no programa, a depender da vulnerabilidade do município. Pelas regras, médico receberá o incentivo completo ao final de 48 meses ou poderá antecipar 30% desse valor ao final de 36 meses. Assim, um médico que esteve 48 meses, por exemplo, e estiver em uma cidade que der adicional de 10% das bolsas receberia R$ 59,4 mil extras
– Incentivo para fixação para médico do Fies (ao permanecer pelo menos 12 meses): modelo em que profissional poderá receber adicional de 40% a 80% da soma total das bolsas de todo o período em que esteve no programa, a depender da vulnerabilidade do município. Valor será pago em quatro parcelas: 10% por ano durante os três primeiros anos, e 70% restantes ao completar 48 meses
– Incentivo para médico do Fies residente de medicina de família e comunidade: serão ofertadas vagas para os médicos residentes de medicina de família e comunidade que foram beneficiados pelo Fies, auxiliando no pagamento total do valor da dívida
Oferta educacional 
Como era: especialização
Como fica: especialização, mestrado ou aperfeiçoamento
Licença-maternidade
Como era: médica deixava de receber a bolsa durante o período da licença, passando a receber auxílio do INSS
Como fica: receberá a bolsa para completar o valor do auxílio do INSS durante o período de até seis meses
Licença-paternidade Como era: sem previsão de afastamento nesse período
Como fica: receberá a bolsa durante o período de até 20 dias
Outros benefícios 
Pontuação adicional de 10% na seleção de programas de residência para médicos que concluírem a residência de medicina de família e comunidade
Contrapartida com municípios
Como era: seleção e vagas eram financiadas pelo Ministério da Saúde
Como fica: municípios serão responsáveis pelo pagamento das bolsas aos médicos contratados nas demais 10 mil vagas, enquanto o processo de seleção fica por conta do Ministério da Saúde.

Fonte: Ministério da Saúde

 

FONTE: CORREIO DO ESTADO