Compreender a letra de um receituário médico é um desafio tanto para os pacientes, quanto para o profisisonal farmacêutico. Diante desse impasse que pode gerar sérios riscos à saúde, a justiça acolheu a ação civil pública da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul e determinou que o Município de Campo Grande forneça receitas médicas e pedidos de exames digitados ou, em caso de atendimento emergencial, que a prescrição se dê em letra de forma.

Além disso, a decisão exige que a Rede de Sáude Pública de Campo Grande seja equipada com computadores, impressoras, tinta e papel sulfite em todas as unidades de saúde, da Atenção Primária à Saúde até os hospitais.

Ao Correio do Estado, o farmacêutico, Gilnandson Conceição de Lima, de 31 anos, conta que desde quando estava na faculdade já existia uma legislação falando que os médicos deveriam prescrever de forma legível. No entanto, na prática profissional o mais comum é receber receitas ilegíveis.

“Chega receita ilegível o dia inteiro pra gente na farmácia. Acredito que falta fiscalização. Nem sempre conseguimos decifrar a receita. Não é nem questão de fazer uma leitura, é decifrar mesmo o que está escrito. Temos que usar nossa experiência para não deixar o paciente desamparado. É como se fosse uma segunda consulta, temos que perguntar o que está sentindo para localizar o medicamento daquela patologia e verificar a dosagem”, relata o farmacêutico.

O farmacêutico que está na linha de frente entre médico e paciente comemora a decisão da Justiça em exigir a receita digital no município de Campo Grande.

“Vai facilitar muito tanto para farmácia, quanto para o paciente. A receita, na verdade, é feita como uma orientação para o paciente. Se nós que somos farmacêuticos não estamos conseguindo entender o que está escrito, imagina o paciente que é leigo e precisará administrar os medicamentos em casa”, pondera Gilnadson.

No dia a dia, para decifrar as receitas e não cometer o erro de entregar um medicamento errado, Gilnandson revela que existem grupos de whatsapp entre os colegas de profissão e que os anos de experiência são fundamentais para conseguir interpretar o que está escrito.

“Usamos também como recurso os grupos do WhatsApp onde consultamos outros colegas, para ver se alguém consegue entender ou se alguém já conhece. Porque tem uns médicos que nós já conhecemos a letra dele” revela o farmacêutico.

Por sua vez, a presidente do Conselho Regional de Farmácia de Mato Grosso do Sul (CRF-MS), Daniely Proença ressalta que o problema das receitas médicas ilegíveis e com abreviações pode levar a erros na dosagem dos medicamentos, afetando a saúde das pessoas que dependem delas.

“Observamos na maior parte das receitas, além da letra ilegível as abreviações e com isso há um grande risco de erro nas dosagens, porque são mal escritas. A prescrição é um direito do cidadão e direito também do farmacêutico, que está no balcão e precisa entender de uma forma clara qual é o tipo de medicamento e posologia que aquele paciente vai dar início ao tratamento. A maioria dos medicamentos consumidos em todo o mundo é prescrita de forma inadequada e isso é um grande risco à população que pode levar até a morte do paciente”, avalia a presidnete do CRF-MS.

Ação civil pública

A inicial da ação civil pública foi assinada pelo defensor público Amarildo Cabral, titular da 40ª Defensoria Pública. Segundo o documento “Inúmeros assistidos da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul buscam diariamente assistência médica a ser ofertada pelas Instituições de Saúde desta cidade. A fim de promover o devido atendimento solicitamos uma lista de documentos, sobretudo receitas, exames, relatórios e outros a serem elaborados por médicos (doc. anexo).”.

Os citados documentos, oriundos dos Postos de Saúde Municipais e da Santa Casa, na maioria das vezes, são redigidos à mão pelos médicos e, muita vez, com letra ilegível.

A ação foi acompanhada pelo defensor público Nilton Marcelo de Camargo, titular da 4ª Defensoria Pública de Atenção à Saúde (NAS) de Campo Grande, que destacou a importância da decisão para garantir o direito à saúde e à vida dos cidadãos assistidos pela Defensoria Pública.

Segundo o defensor, “a expectativa é de que esta medida resulte em uma melhoria significativa na comunicação entre médicos e farmacêuticos, reduzindo os riscos associados à dispensação incorreta de medicamentos. A decisão marca um passo importante na garantia de um serviço de saúde coletiva mais eficiente e seguro para a população de Campo Grande”.

O Problema das prescrições ilegíveis

A questão das prescrições médicas ilegíveis se manifesta de várias formas. Com base em dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), mais da metade dos medicamentos são utilizados de maneira inadequada, um problema agravado pelas prescrições ilegíveis. Nos Estados Unidos, por exemplo, essas prescrições resultam na morte de cerca de 7 mil pessoas anualmente, um número alarmante que chama a atenção para a gravidade dessa questão.

A caligrafia ininteligível e as abreviações não padronizadas de dosagens também criam uma mistura perigosa.

Erros graves de no aviamento ou no uso de medicações ocorrem frequentemente devido à confusão na interpretação da grafia. Em muitos casos o uso equivocado de um medicamento pode não produzir o efeito esperado, enquanto em outros pode agravar ou até causar a morte do paciente. São exemplos de medicamentos com nomes ou sons semelhantes:

O problema não impacta apenas os pacientes, que lutam para entender suas receitas médicas, mas também coloca em risco farmacêuticos, médicos e toda a sociedade. Essa prática resulta em danos sociais, comprometendo a segurança dos tratamentos médicos.

Desafios no SUS: a realidade dos pacientes e profissionais de saúde

Enquanto na rede privada de saúde os receituários emitidos pelos profissionais de saúde são impressos ou eletrônicos, no Sistema Único de Saúde (SUS), o problema das prescrições ilegíveis está agravado pela falta de instalação recursos tecnológicos, como computadores e impressoras nas unidades de saúde, levando profissionais de saúde a emitirem prescrições manuais ilegíveis.

O dano é individual e social esclarece o defensor público. Do ponto de vista individual, potencializa-se o risco de aviamento de um medicamento equivocado pelo farmacêutico.

Também obriga os pacientes a procurarem várias farmácias na esperança de que alguma decifre a prescrição, um processo que aumenta o risco de erros de medicação. Do ponto de vista social, aceita-se que um agir profissional tão tacanho se prolongue indefinidamente”, pontua o Dr. Nilton, membro do NAS.

Para a Secretaria Municipal de Saúde (SESAU), a rede de internet também é um problema. Até 2021, a internet da SESAU funcionava através de rádio, e somente agora está ocorrendo a substituição por cabo, possibilitando um acesso mais rápido aos sistemas de informação do próprio órgão.

“A tecnologia será sempre meio. O fim sempre será a prescrição legível. A prescrição ilegível continua ocorrendo dia-a-dia, potencializando o risco de dano à vida e à saúde de pacientes. O discurso vulgar de que a prescrição ilegível pode ser tolerada devido à falta, indisponibilidade ou gradual, mas lento, aparelhamento tecnológico nas unidades básicas é também nefasto. Não pode ser convincente para justificar a falta ética de profissionais que insistem em fazer uso de letra ilegível ao prescreverem algum receituário. Conduta dessa natureza revela o profundo desrespeito do profissional de saúde com seu paciente e a sociedade.”, argumenta o defensor público Nilton Marcelo de Camargo, titular da 4ª Defensoria Pública de Atenção à Saúde de Campo Grande.

Segundo o defensor público Nilton Marcelo de Camargo, o Núcleo de Atenção à Saúde (NAS) da Defensoria Pública apresentou um planejamento de atuação estratégica para coibir, reduzir, conscientizar e acompanhar a mudança de paradigma: de prescrição ilegível para prescrição legível.

Ao lado de outras instituições, o NAS desenvolverá atividades com o fim de monitorar o progresso das medidas adotadas e promover a adoção de prescrições legíveis. Além disso, há um esforço colaborativo para desenvolver um manual de prescrição legível, envolvendo órgãos reguladores e instituições educacionais.

“Trata-se de um planejamento cuja execução será superior a 1 (um) ano. Acreditamos que o envolvimento e a colaboração de todos os órgãos e instituições de classe nesta problemática fará a diferença. À medida que as metas forem alcançadas espera-se uma mudança social. Órgãos e instituições antes desagregados, possam prestar sua colaboração para a eliminação da prescrição ilegível, essa anomalia ética tão desrespeitosa aos pacientes e com tão potencial risco de dano ao indivíduo e a sociedade”, concluiu o defensor.

Fonte: Correio do Estado