O projeto de regulamentação do lobby aprovado na Câmara dos Deputados na semana passada, após 15 anos de debates, abre brechas que podem dificultar o combate à corrupção e a fiscalização de conflitos de interesses ou troca de favores.
Segundo entidades da sociedade civil que exercem a atividade ou monitoram a transparência do poder público, o texto tem lacunas que podem permitir, por exemplo, oferta de voos em jatinhos. Outro problema é a possibilidade de sigilo de documentos trocados entre lobistas e agentes públicos.
O projeto teve relatoria do deputado Lafayette de Andrada (Republicanos-MG) e teve como base o projeto apresentado pelo governo Jair Bolsonaro (PL), modificado com ajuda de outra proposta que tramitava na Câmara, de Carlos Zarattini (PT-SP). O texto ainda precisa passar pelo Senado, onde pode sofrer alteração.
Um grupo de mais de 50 entidades –dentre as quais estão Transparência Internacional, Pacto pela Democracia e Observatório do Clima– chegou a enviar sugestões de alteração, mas afirma que nenhuma foi acatada.
Profissionais vinculados a essas organizações dizem que as modificações haviam sido acatadas no relatório elaborado pelo deputado Augusto Coutinho (Republicanos-PE) na Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público. Porém, o texto foi descartado após Lafayette aprovar um requerimento de urgência no plenário, o que lhe permitiu elaborar um novo parecer sobre o tema.
“O relator de plenário não é obrigado a copiar, tem ampla liberdade para fazer ajustes e melhoramentos. Foi o que fiz ouvindo e conversando com as entidades que atuam nesse seguimento. Acho que o texto final ficou bom, tanto que foi aprovado por aclamação com ampla maioria, apenas com o voto contrário do Psol”, afirmou Lafayette.
As regras para hospitalidade estão entre os pontos criticados. O projeto permite o que chama de “hospitalidade legítima”, uma definição vaga, segundo especialistas.
De acordo com o texto, oferta de viagens ou hospedagens precisa respeitar os interesses institucionais, ou seja, não pode servir como agrado ao agente público, e o pagamento deve ser feito diretamente pelo agente privado.
No entanto, o texto estipula que o valor precisa ser “compatível, na hipótese das mesmas hospitalidades serem ofertadas a outras pessoas” e que cumpra “propósitos legítimos”.
Segundo especialistas, a definição pode dar margem à oferta de diárias em hotéis de luxo e a viagens em jatos particulares a agentes públicos, ou até a realização de eventos em resorts.
“Deveria ser exigida uma justificativa antes para a viagem, o que impediria, por exemplo, o pagamento de uma viagem em primeira classe. A questão dos valores ficou muito solta. Valores compatíveis a outras pessoas na mesma condição? Não é uma comparação com pessoas de nível médio, por exemplo. E se o grupo for de uma pessoa só?”, questiona Guilherme France, consultor da Transparência Internacional.
Ele lembra ainda que cada entidade –por exemplo, Câmara dos Deputados ou Senado– é responsável por instaurar o processo administrativo por possíveis descumprimentos da lei, o que abre espaço para diferentes interpretações do que é ou não legítimo ou compatível.
Já Carolina Venuto, presidente da Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (Abrig), discorda das críticas. “As definições, ao que me consta, são retiradas da lei do servidor público. Fazer leis incorrendo no vício de pensar que elas serão descumpridas cria textos com muitos detalhes e de difícil compreensão. Essa definição já é de conhecimento e utilização [pelos agentes públicos], então o projeto ajuda ao criar o mecanismo de questionamento”, diz.
Outro ponto problemático, segundo entidades, é que o texto não prevê a obrigação de emails ou documentos trocados entre lobistas e agentes públicos sejam tornados públicos –a lei obriga a transparência apenas quanto a detalhes de encontros, ainda que virtuais.
“O projeto coloca obrigações em termos de informar participantes de reuniões, local, mas não obriga que os agentes privados ofereçam os documentos trocados com o agente público. Por exemplo, se o agente privado elabora um estudo para subsidiar a aprovação de uma lei, em tese, para entendermos o processo de elaboração da política pública, precisaríamos ter acesso a esse documento”, diz France.
Ele sugere, ainda, que deveria ser anexado aos projetos de lei um relatório com as informações das entidades interessadas e que atuaram em seu debate e elaboração, e critica o fato de que cabe apenas ao agente público, e não ao lobista, o dever da transparência ativa.
“Quando temos as informações dos dois lados, a gente consegue comparar e verificar se elas são verídicas. Na forma que temos, é indireto: o agente privado passa a informação para o agente público e o agente público registra no órgão de transparência”, afirma.
Para Venuto, no entanto, a lei deve priorizar apenas as interações formais, ou seja, os encontros. E acrescenta que exigir a publicidade por parte dos lobistas poderia aumentar custos e dificultar a atuação da sociedade civil.
“Isso pode acabar encarecendo a atividade e trazendo um efeito danoso, a ida para a informalidade, como aconteceu nos Estados Unidos. A transparência das agendas vai ser algo ótimo para o controle da imprensa, da sociedade e até para uso dos próprios lobistas na hora de elaborar estratégias”, diz.
Juliana de Paula, consultora legislativa do ISA (Instituto Socioambiental), entidade que atuou ativamente no debate sobre o projeto, sugere que o texto deveria prever o acesso de partes de interesses contrários à agenda entre um parlamentar e uma empresa, por exemplo.
Para ela, o fato de ser a autoridade do poder ao qual o agente responde a instância responsável por instaurar processos administrativos, também pode trazer problemas.
“No caso de deputados, o presidente da Câmara; senadores, o presidente do Senado. A questão é que essas não são autoridades imparciais, elas estão na política e têm interesses. O processo deveria ser instaurado por um comitê imparcial, não pela autoridade”, diz.
Procurado, Lafayette afirmou que utilizou, para as regras de hospitalidade, de publicidade de documentos e do processo julgador, o texto de leis já existentes, como o Estatuto do Servidor Público, o sigilo de correspondência e a Lei do Processo Administrativo.
“Não inovei nada, busquei sempre que possível manter o que já existe em lei em vigor”, afirmou.
Roberto Livianu, procurador do Ministério Público de São Paulo e presidente do Inac (Instituto Não Aceito Corrupção), diz que o texto está “viciado” e busca “legalizar a corrupção”.
“Pretende-se simplesmente calar as críticas, além de legitimar a oferta de presentes a agentes públicos e a realização de seminários e feiras luxuosas por empresários”, afirma Livianu.
O QUE PREVÊ O PL DO LOBBY APROVADO NA CÂMARA
REGRAS
– A lei institui os limites da relação entre lobistas e agentes públicos, e diz que a relação entre as partes deve respeitar os princípios da transparência, ética, integridade e boa-fé.
PUNIÇÕES
– A pena para o agente público que descumprir a lei vai de advertência até exoneração do cargo; já o lobista pode ter a autorização para atuar suspensa.
ASSÉDIO
– Omitir informações, prometer ou aceitar vantagens e presentes indevidos, em benefício próprio, ou assediar participantes de reuniões são consideradas infrações à lei.
HOSPITALIDADE
– A lei define os limites para oferta de hospedagem e transporte por parte de lobistas para agentes públicos, mas tem brechas que podem permitir o pagamento de serviços luxuosos para políticos.
DOCUMENTOS
– Apesar de exigir a transparência sobre interações e reuniões, virtuais ou presenciais, a lei não obriga as partes a divulgarem documentos -emails ou estudos- trocados entre elas.
FONTE: CORREIO DO ESTADO