Após duas semanas de negociações, a COP15 da biodiversidade da ONU adotou o novo marco global da biodiversidade na madrugada desta segunda-feira (19), em um clima de atropelo da presidência da COP, conduzida pela China, e também de protesto de países africanos.

Às 3h33 da segunda-feira (19), o presidente da COP15 e ministro do Meio Ambiente da China, Huang Runqiu, bateu o martelo em gesto de adoção do acordo, ao mesmo tempo em que anunciava não ter ouvido objeções.

Com 23 objetivos, o acordo estabelece que o mundo salte do pouco mais de 15% de áreas conservadas no planeta atualmente para pelo menos 30% até 2030, além de restaurar outros 30% de áreas degradadas e zerar a perda de territórios biodiversos.

Apelidada de ’30×30′, ela é considerada a principal meta do acordo pelos países que integram a Coalizão de Alta Ambição das negociações. Os canadenses tentam emplacar a marca ’30×30′ como equivalente à meta climática de manter o aquecimento global abaixo do 1,5ºC.

A meta 30×30 também reconhece os territórios indígenas como parte da solução para a conservação -vencendo uma tentativa da União Europeia de excluir os territórios indígenas da proposta.

O argumento usado pelos europeus era de que terras indígenas podem não ser relevantes para a conservação, a despeito do relatório do painel de biodiversidade da ONU (Ipbes) ter concluído, em 2018, que as terras indígenas contribuem para 80% da biodiversidade do planeta.

O Brasil foi um dos países que apoiou a permanência da menção aos territórios indígenas na meta de conservação. O país ainda desistiu de sugerir uma implementação nacional -o que obrigaria cada país a conservar 30% dos seus territórios- e passou a aceitar a meta global, sem menções específicas sobre a implementação.

Uma conquista parcial do bloco de países em desenvolvimento, puxada pelo Brasil e pelo grupo africano, foi a criação de um fundo de biodiversidade, que deve ser estabelecido em 2023 sob a gestão do mecanismo financeiro já adotado pela Convenção, o GEF (Global Environment Facility).

Em vez de um fundo sob a tutela do GEF, o Brasil e os países em desenvolvimento gostariam de ver um fundo de biodiversidade dentro da Convenção de Diversidade Biológica -diferentemente do GEF, o novo fundo teria obrigação de responder às decisões das COPs.

O fundo a ser criado sob o GEF ainda em 2023 deve contar com um órgão de governança próprio. A decisão também prevê a possibilidade de criar um mecanismo financeiro que fique sob a autoridade da COP, o que será avaliado por um comitê da Convenção.

A quantidade de dinheiro prometida pelo novo marco global da biodiversidade desagrada ambos os blocos, mas os países em desenvolvimento tiveram conquistas de última hora sobre o texto, que ganhou, já na noite de domingo, uma menção específica a “assistência oficial para desenvolvimento”. O termo se refere ao dinheiro que sai dos cofres públicos dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento.

Embora citem a assistência oficial, as metas de financiamento também incluem fontes públicas, privadas e filantrópicas. O texto prevê que todos os países devem mobilizar um acréscimo anual nos atuais US$ 100 bilhões direcionados à biodiversidade até chegar em US$ 200 bilhões em 2030.

Do total desse esforço global, a responsabilidade dos países desenvolvidos em favor dos países em desenvolvimento é de mobilizar o acréscimo de pelo menos US$ 25 bilhões até 2025 e US$ 30 bilhões até 2030.

DISCORDÂNCIA

Minutos antes do anúncio, no entanto, a República Democrática do Congo havia manifestado na plenária o seu descontentamento com o acordo, que, na visão deles, não estava pronto para ser adotado.

O atropelo à objeção motivou o protesto de outros países africanos na plenária. O negociador da Uganda afirmou que, sem um esclarecimento sobre o procedimento de adoção do acordo, o caso se tornaria uma fraude.

Segundo o consultor jurídico da Convenção de Diversidade Biológica da ONU, o comentário feito pela República Democrática do Congo não mencionou explicitamente se tratar de uma objeção formal -embora o país tenha voltado a tomar o microfone para confirmar que foi, sim, uma objeção ao acordo, que só pode ser adotado sob consenso dos países-membro da Convenção.

“Uma vasta maioria dos países concordaram, foi um texto equilibrado. Não é a primeira vez que uma decisão é adotada rapidamente e alguns países reclamam”, afirmou à imprensa o ministro do Meio Ambiente do Canadá, Steven Guilbeault, ao final da plenária.

“A injustiça colonial emblemática hoje pelo que ocorre no Congo [RDC] é a origem de todos os problemas que encontramos hoje na Convenção e na relação entre os humanos e a natureza, inclusive o que faz alguns países relutarem contra a metáfora da Mãe Terra [termo presente no acordo por sugestão da Bolívia]”, afirmou ao fim da plenária o negociador-chefe da Namíbia, Pierre du Plessis.

“Ficamos na narrativa de países em desenvolvimento versus desenvolvidos, mas precisamos de uma solução muito mais holística do que conseguimos desenhar nesse novo marco global”, afirmou.
Negociadores de países desenvolvidos e co-presidentes da COP15 afirmaram à reportagem que a República Democrática do Congo estava irredutível e o ministro que chefia a delegação não estava presente na madrugada desta segunda -o que empurraria a negociação para o período diurno do último dia de COP.

Além de não ver saída para as demandas do RDC, que pedia mais compromisso com financiamento, os chineses não abriram mão de antecipar para a noite de domingo a plenária de encerramento -até a tarde do domingo (18), ela estava prevista para a tarde de segunda-feira.

Apesar do atropelo na plenária final, o resultado do texto aprovado contemplou demandas dos diferentes blocos de negociação, que buscavam um texto mais realista e implementável do que o acordo das Metas de Aichi, adotado em 2010 e que vigorou até 2020.

O novo marco traz metas de conservação consideradas ambiciosas pelo bloco desenvolvido e prevê a criação de um fundo para financiamento das ações de biodiversidade, uma demanda do Brasil e do grupo africano.

Também houve aceitação dos países sobre a meta que trata dos subsídios danosos à biodiversidade. Ela prevê que os países devem identificar os subsídios danosos à biodiversidade até 2025 e preparar uma transição para eliminá-los ou reformá-los, de forma a cortar US$ 500 bilhões até 2030 em subsídios danosos -aumentando, por outro lado, os incentivos positivos para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade.

Puxada pela França, a União Europeia brigou pela previsão de eliminação dos subsídios danosos, colocando o mundo na mesma direção da estratégia europeia, que prevê cortar pela metade o uso de pesticidas agrícolas até 2030.

O texto contou com forte oposição de países fortemente agrícolas como Brasil, Argentina e Indonésia, mas foi aceito após retirar menções específicas a pesticidas agrícolas.

O termo, entretanto, ainda é citado em uma meta sobre combate à poluição, a qual prevê reduzir pela metade o risco associado a pesticidas e outros produtos químicos.

Diferentemente do Acordo de Paris de mudanças climáticas, o marco global não é juridicamente vinculante -ou seja, não deve se tornar lei nacional nos países que o adotam.

Ainda assim, o texto deve orientar políticas públicas nacionais e os países devem enviar relatórios nacionais sobre o progresso na implementação das metas.

 

FONTE: CORREIO DO ESTADO