Os dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) apontam para um cenário estarrecedor: entre os dias 1º de janeiro e 5 de fevereiro de 2023, 106 estupros de crianças foram registrados em Mato Grosso do Sul.
Por dia, pelo menos três casos desse crime brutal são registrados em vítimas menores de 12 anos em MS.
Na sequência, no mesmo período, 53 adolescentes já sofreram violência sexual. Juntos, os dois públicos representam 82,81% do total de casos de estupros registrados até este domingo.
Conforme entrevista publicada no Correio do Estado no mês passado, o promotor de Justiça titular da 69ª Promotoria de Justiça de Campo Grande, Marcos Alex Vera de Oliveira, relatou que, em quase todos os casos, o autor se aproveita da pouca idade das vítimas para cometer o crime.
“Tanto que o maior porcentual de vítimas de crimes sexuais é do sexo feminino e têm idade entre 5 anos e 11 anos”, disse.
Em Campo Grande, as 30 crianças de até 12 anos violentadas sexualmente representam 51,72% dos 58 casos de estupro registrados nos primeiros 36 dias deste ano na Capital. Em seguida, os adolescentes aparecem em 24,13% dos casos registrados, com 14 vítimas de até 17 anos, conforme os dados da Sejusp.
VIOLÊNCIA EXTREMA
Em coletiva de imprensa realizada na manhã de ontem na Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (DEPCA), a delegada Anne Karine Trevisan e o delegado-geral da Polícia Civil, Roberto Gurgel, informaram que Sophia de Jesus Ocampo, de dois anos, já estava morta sete horas antes de ser levada pela mãe, Stephanie de Jesus, de 25 anos, à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Coronel Antonino, em Campo Grande.
A criança faleceu no dia 26 de janeiro, vítima das agressões da mãe Stephanie e do padrasto, Christian Leitheim, de 24 anos. Além disso, o padrasto e a genitora também foram autuados em flagrante por estupro de vulnerável, após ser verificado que Sophia tinha algumas lesões em seus órgãos genitais.
A partir da investigação, que contou com o depoimento de nove pessoas, entre médicos e familiares, foi possível considerar o homicídio como qualificado por motivo fútil em flagrante, pela condição da vítima ser do sexo feminino e por ela ser menor de 14 anos.
Assassinada aos 2 anos de idade, Sophia era violentada há pelo menos um ano, já que o primeiro boletim de ocorrência registrado contra os agressores da criança data de 31 de janeiro de 2022.
De acordo com os policiais, esse boletim foi registrado pelo pai da criança, Jean Carlos Ocampo, no ano passado, quase um ano antes de a criança ser morta em decorrência de lesões na coluna cervical provenientes de espancamento.
Na queixa, o pai da criança alegou que Sophia tinha sinais de maus-tratos e acusou Stephanie de Jesus e Christian Leitheim pelas agressões.
Conforme apurado, o pai da criança procurou a DEPCA após a avó materna de Sophia entrar em contato com ele para contar que sua neta estava sofrendo agressões em casa. Contudo, quando foi chamada para prestar esclarecimentos na fase de instrução, ela voltou atrás e negou que Sophia fosse violentada.
Após perícia dos aparelhos celulares do padrasto e da genitora, foi confirmado que os dois planejavam desculpas para negar o crime.
Stephanie levou a menina à UPA Coronel Antonino utilizando um carro de aplicativo. O motorista foi ouvido pela polícia e contou que não escutou a criança chorando ou conversando.
Já a avó materna, indicada como uma das testemunhas da genitora de Sophia, não acredita na inocência de Stephanie ou que ela não soubesse o que acontecia.
ERROS SISTÊMICOS
Em apenas dois anos de vida, Sophia já tinha 30 registros médicos em decorrência de possíveis agressões e lesões, mas os mesmos nunca foram encaminhados para a delegacia.
Além disso, o pai da menina já havia buscado ter a guarda da filha, por desconfiar dos maus-tratos, tendo feito boletim de ocorrência há um ano e apresentado ao Conselho Tutelar.
Segundo o Conselho Tutelar, na busca pela guarda da filha, o pai da criança tentou ficar responsável por ela.
Ele foi encaminhado à Defensoria Pública e ao Conselho Tutelar, que realizou visita técnica, mas na ocasião a criança não tinha nenhum indício de maus-tratos.
Na visita, foi constatado que a criança não tinha marcas e nem hematomas e, por ser muito pequena, não falava.
“Naquela situação que ele vivenciava, ele não tinha elementos tão concretos para realmente afirmar que a criança estava passando por violência. Então, ele não solicitou medidas protetivas, por não parecer necessário”, disse a delegada.
A falha de assistência de diferentes órgãos pode ser, ainda, o reflexo da homofobia extremamente presente na sociedade, haja vista que o pai de Sophia é casado com outro homem, Igor de Andrade. A mãe e o padrasto de Sophia seguem presos.
QUATRO VÍTIMAS POR DIA
Conforme balanço realizado pelo Correio do Estado com dados da Sejusp, em 2022, MS contabilizou 1.977 estupros. Entre as vítimas, 965 eram crianças de até 12 anos, o equivalente a 48,81% do total de casos registrados.
Os adolescentes de até 17 anos representaram 33,68% dos casos, com 666 vítimas em todo o ano passado. A cada 24 horas, quatro crianças e adolescentes foram estupradas em Mato Grosso do Sul. A média para esses dois grupos permanece a mesma neste ano.
SINAIS
Ao Correio do Estado, a psicóloga Izabelli Coleone destacou a necessidade de os pais ficarem atentos a qualquer sinal de mudança no comportamento dos filhos. Atitudes retraídas, dificuldade na comunicação ou isolamento podem ser alguns dos sinais de abuso sexual.
Coleone explicou que quando uma criança entra em sofrimento, independentemente da razão, a angústia é refletida no comportamento.
“Às vezes ela pode ficar mais retraída, recusar o toque ou ter receio de ficar sozinha, se o abusador, por exemplo, fizer parte do convívio familiar”, salientou a especialista.
A psicóloga afirmou que, além das orientações básicas do dia a dia em família, falando sobre a conscientização do sexo, das doenças e como anda o cenário de abusos sexuais, é importante que os pais pratiquem o acolhimento com os filhos.
“Dessa forma, as crianças vão poder se aproximar de alguém de confiança e relatar o que aconteceu. Dependendo da idade da criança, as informações podem ser dadas de forma lúdica, mas sempre bem clara e de maneira que isso faça sentido, caso venha ocorrer”, destacou a psicóloga. (Colaboraram Ana Clara Santos, Leo Ribeiro e Valesca Consolaro)
Saiba: De acordo com a quebra de sigilo telefônico do casal, os dois sabiam das implicações da morte da menina de 2 anos e tentavam criar uma história para justificar o óbito da criança à polícia.
“Inventa qualquer coisa, diga que ela caiu no parquinho”, escreveu o padrasto da criança em um aplicativo de mensagens.
FONTE: CORREIO DO ESTADO