O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro (foto), disse aos comandantes das Forças Armadas que a pasta não divulgará nenhuma ordem do dia em 31 de março sobre a ditadura militar.
Em resposta, os chefes militares fazem sinalizações internas desde janeiro de que o golpe não será celebrado –rompendo um ciclo de quatro anos consecutivos em que, sob Jair Bolsonaro (PL), o governo comemorou a ditadura em comunicados oficiais.
A decisão, segundo relatos de interlocutores de Múcio, foi natural e repassada em conversas informais entre o ministro e os comandantes Tomás Paiva (Exército), Marcelo Damasceno (Aeronáutica) e Marcos Olsen (Marinha).
O general Tomás Paiva, comandante do Exército, cumprimenta o ministro da Defesa, José Múcio, durante solenidade de passagem do comando do Exército. Não haverá nenhuma decisão formal sobre o tema, e a estratégia na cúpula da Defesa é não tocar no assunto, considerado sensível e com poder de desgastar a relação com os militares.
O comandante do Exército, Tomás Paiva, comunicou ao Alto Comando da Força em reunião no fim de janeiro que não deveria haver nenhuma nota oficial dos militares sobre a ditadura militar.
Na visão de oficiais-generais ouvidos pela reportagem, sob reserva, as manifestações sobre o assunto devem ficar restritas aos círculos de militares da reserva, representados por clubes e associações.
Nos quatro anos de governo Bolsonaro, o Ministério da Defesa publicou ordens do dia em celebração ao golpe militar de 1964. A comemoração foi uma ordem dada pelo ex-presidente.
“Nosso presidente já determinou ao Ministério da Defesa que faça as comemorações devidas com relação ao 31 de março de 1964 incluindo a ordem do dia, patrocinada pelo Ministério da Defesa, que já foi aprovada pelo nosso presidente”, disse em 2019 o então porta-voz da Presidência, general Otávio Rêgo Barros.
Desde então, os ministros Fernando Azevedo e Braga Netto divulgaram comunicados sobre o dia, que foram lidos nos quartéis e eventos militares marcados para 31 de março.
Azevedo escreveu que “o Movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira. Muito mais pelo que evitou”.
E completou: “A sociedade brasileira, os empresários e a imprensa entenderam as ameaças daquele momento, se aliaram e reagiram. As Forças Armadas assumiram a responsabilidade de conter aquela escalada, com todos os desgastes previsíveis”.
Braga Netto, depois, foi ainda mais incisivo em sua manifestação. Ele disse que a ditadura militar merece ser “celebrada”.
“O movimento de 1964 é parte da trajetória histórica do Brasil. Assim devem ser compreendidos e celebrados os acontecimentos daquele 31 de março”, finalizou o comunicado.
O Exército chegou a celebrar a ditadura de 1964 em comunicados oficiais, lidos em quartéis, antes do governo Bolsonaro. Nos primeiros mandatos de Lula, o comandante militar escreveu quatro manifestações em comemoração ao aniversário do golpe.
Em 2006, por exemplo, o comandante Francisco Albuquerque emitiu um comunicado para o Exército “orgulhar-se do passado”.
“O 31 de Março insere-se, pois na História pátria e é sob o prisma dos valores imutáveis de nossa Força e da dinâmica conjuntural que o entendemos. É memória, significado à época pelo incontestável apoio popular, e une-se, vigorosamente, aos demais acontecimentos vividos, para alicerçar, em cada brasileiro, a convicção perene de que preservar a democracia é dever nacional.”
À época, o ministro da Defesa Waldir Pires disse que respeitava a posição do comandante do Exército. “Não tenho nada a contestar à posição de quem interprete dessa forma [a exaltação ao golpe militar]. Tenho que respeitar a posição de cada um”, afirmou.
O Exército deixou de divulgar comunicados oficiais em comemoração ao golpe militar em 2007. Nos últimos 16 anos, as únicas citações oficiais foram feitas pelo Ministério da Defesa.
Logo após assumir a Presidência, em 2011, Dilma Rousseff (PT) determinou que as Forças Armadas não citassem a ditadura militar nas ordens do dia. Naquele ano, o Exército chegou a vetar uma palestra do general Augusto Heleno que seria realizada em comemoração ao golpe de 1964.
Neste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deixou para Múcio a definição sobre o que seria feito. O ministro disse a interlocutores que não pretende falar sobre o assunto publicamente e tenta evitar entrevistas, para não dar abertura para novas crises com os militares diante de muitos assuntos sensíveis.
Segundo relatos, Múcio tem se queixado das consecutivas notícias negativas e princípios de crises na caserna, como a situação do tenente-coronel Mauro Cid, a demissão do general Júlio César de Arruda, o vazamento do áudio do comandante Tomás Paiva e a investigação sobre a participação de militares nos atos golpistas de 8 de janeiro.
Apesar do tom conciliador de Múcio, alas do PT têm aconselhado integrantes do governo para que o Ministério da Defesa seja ainda mais incisivo em 31 de março e divulgue um comunicado oficial em repúdio à ditadura militar.
O ministro, porém, tem se mostrado contrário à possibilidade e afirma a auxiliares que somente ignorar a data será suficiente para evitar crises.
A ditadura militar no Brasil teve uma estrutura dedicada a tortura, mortes e desaparecimento.
Os números da repressão são pouco precisos, uma vez que a ditadura nunca reconheceu esses episódios. Auditorias da Justiça Militar receberam 6.016 denúncias de tortura. Estimativas feitas depois apontaram para 20 mil casos.
Presos relataram terem sido pendurados em paus de arara, submetidos a choques elétricos, estrangulamento, tentativas de afogamento, golpes com palmatória, socos, pontapés e outras agressões. Em alguns casos, a sessão de tortura levava à morte.
Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade listou 191 mortos e o desaparecimento de 210 pessoas. Outros 33 desaparecidos tiveram seus corpos localizados posteriormente, num total de 434 pessoas.
FONTE: CORREIO DO ESTADO