O Ministério da Fazenda prepara uma série de medidas para remover entraves no mercado de crédito no Brasil. Para a pasta, a necessidade das ações é reforçada pelo cenário de retração nas concessões em meio à recuperação judicial de grandes empresas e aos riscos no sistema financeiro internacional.

Marcos Barbosa Pinto, secretário de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, afirma em sua primeira entrevista no cargo que os bancos brasileiros são sólidos -mas que o momento não é confortável e precisa ser acompanhado de perto.

“É uma situação a ser monitorada com cuidado. A gente teve alguns eventos de crédito isolados, mas que podem ter repercussões maiores -como é o caso da Americanas-, e soma-se a isso uma situação mundial que inspira cuidados”, diz à Folha. “Crises como essas se espalham rápido e é preciso atenção”, complementa.

Enquanto monitora o cenário, o secretário tem desenhado reformas microeconômicas voltadas ao crédito. Parte delas tem como objetivo aumentar a segurança do mercado de capitais para evitar riscos vistos em casos como o da Americanas -facilitando, por exemplo, a execução de dívidas de empresas.

As medidas vão demandar, em grande parte, alterações por meio de projetos de lei que serão enviados ao Congresso, mas algumas iniciativas dependem apenas do Executivo.

É o caso das mudanças para facilitar que clientes compartilhem dados como os do Imposto de Renda com os bancos, o que daria mais precisão às instituições sobre as condições do tomador de crédito.

“Isso é muito importante para a micro empresa. Qual o grande problema dela? Não se tem dados confiáveis de faturamento, de patrimônio. Não tem auditoria. Onde estão esses dados? Nos sistemas da Receita”, diz. “Vamos conseguir reduzir o custo de transação”, afirma.

A pasta também defende eliminar o teto de juros existente para empréstimos entre particulares -hoje restrito à taxa básica (a Selic). Para Pinto, o limite atrapalha o desenvolvimento do mercado de capitais e fortalece os bancos tradicionais.

A Fazenda pretende também flexibilizar as exigências para a emissão de debêntures -eliminando, por exemplo, a exigência de assembleias de acionistas para dar aval aos papeis.

Para pessoas físicas, o secretário planeja o lançamento do Desenrola -que permitirá descontos de até 95% das dívidas de negativados, e refinanciamento com taxa de juros limitada a 1,99% ao mês e prazo de 60 meses. O plano inclui o uso de R$ 10 bilhões em recursos do Tesouro Nacional, além da liberação de créditos de bancos no sistema tributário (estimados em cerca de R$ 100 bilhões) como capital para as operações de renegociação.

PERGUNTA – Qual foi a missão dada pelo ministro da Fazenda?
MARCOS BARBOSA PINTO – Os dois eixos da secretaria são atuar para melhorar a eficiência econômica e fazer isso com justiça social. Tem muita coisa na economia brasileira que pode andar muito melhor reduzindo custos de transação e distorções.

P. – Que tipo de distorções são essas?
MP – Hoje há, por exemplo, uma série de limites para taxas de juros fora do setor bancário, e todos bem-intencionados. ‘Vou criar um limite para a taxa de juros aqui [em determinado caso] porque quero proteger o consumidor’. Só que o efeito no sistema não é esse. Quando você tem um limite da taxa de juros, tem um outro sistema inteiro que não tem limite -que é o sistema financeiro. Então você acaba forçando toda a poupança popular [a ir] para o sistema financeiro.

P. – Em que casos será possível rever limites para taxas de juros?
MP – No próprio Código Civil brasileiro, que limita as taxas de juros de empréstimos civis, entre dois particulares, à taxa Selic. Se eu posso emprestar para o governo -que tem o risco mais baixo da economia- exatamente por essa taxa, por que eu vou dar um empréstimo [limitado a essa taxa] para uma pessoa que eu conheço? Ou por que um lojista vai dar crédito se ele só pode cobrar o que ele conseguiria cobrar ao emprestar ao governo, que tem a taxa de juros mais baixa? Isso mata todo o crédito fora do sistema financeiro, incluindo o mercado de capitais.

P. – Tem outro exemplo?
MP – Estamos pensando em várias medidas com bastante impacto. Primeiro ponto é que há uma assimetria informacional muito séria no mercado brasileiro. O devedor que tem um bom risco de crédito tem dificuldade de comprovar que merece uma taxa mais baixa de juros. É difícil, mesmo para o devedor que quer dar acesso aos dados dele, permitir que o credor acesse os dados dele na Receita Federal -onde tem a renda e o patrimônio dele. Queremos facilitar isso. Grande parte [da informação] está nos bancos de dados do setor público, e é a isso que a gente quer dar acesso.

P. – O banco poderia olhar inclusive o Imposto de Renda?
MP – Exatamente. Isso é muito importante para a micro empresa.

P. – Qual o grande problema dela?
MP – Não há dados confiáveis de faturamento, de patrimônio. Não tem auditoria.

P. – Onde estão esses dados?
MP – Nos sistemas da Receita. Isso [acesso] já é possível, mas é um processo extremamente burocrático. Se conseguirmos fazer de uma maneira mais rápida, sobretudo as rechecagens periódicas, vamos conseguir reduzir o custo de transação. A gente consegue resolver isso em grande parte com normativos [sem mudanças em leis].

P. – Essas seriam as principais medidas?
MP – Tem outras. O processo para emitir uma debênture, que é o título principal do mercado de dívida brasileiro, é um tanto burocrático. Você precisa registrar em junta comercial a escritura, por exemplo, e esse é um processo às vezes demorado. A gente vai dispensar isso, assim como a necessidade de convocação de assembleias para a emissão.
Nos bancos públicos, há uma série de amarras que não necessariamente trazem garantia e segurança para o crédito -mas que atrapalham. Certidões, consultas, até título de eleitor você tem que apresentar. Então a gente quer desburocratizar. [Hoje] você exclui a pessoa de um financiamento com o setor público e ela vai ao setor privado -para obter um financiamento mais caro.

P. – Já há uma estimativa sobre a criação de oferta a partir disso?
MP – É difícil saber. Não são medidas transformadoras, mas que terão impacto relevante. O Brasil vem em uma agenda muito boa e queremos ir além. Uma maneira de fazer isso é melhorando a garantia e tem um projeto tramitando que tem bastante valor -o marco das garantias, que está no Senado.

P. – Vocês fariam algum ajuste no projeto?
MP – A criação da instituição gestora de garantias. A gente tem muita dúvida se isso é realmente efetivo, porque os bancos gostam de gerir as garantias eles mesmos. Então corremos o risco de criar uma instituição que não serviria para nada. Além disso, ela vai funcionar como um pequeno banco -o que gera um risco adicional para o sistema que precisa ser avaliado. Mas tem muitas coisas ali que são boas e gostaríamos de apoiar.
Apesar de o projeto ter vindo do governo anterior. Temos que apoiar medidas boas independentemente do governo. E o último ponto que quero mencionar. A gente avançou muito na parte de falência e recuperação judicial, mas pouco no processo de execução em si. Quando uma empresa está quebrada, a gente recupera muito pouco das dívidas que são executadas e isso explica por que a inadimplência é tão alta no Brasil. Gostaríamos de acelerar esse processo e torná-lo mais efetivo.

P. – Como?
MP – Existem muitas medidas em discussão no mundo, e uma delas é tirar do Judiciário, que está lotado de coisas, parte do processo de execução em ação que o credor queira reaver os valores. Poderia ser feito por advogados, empresas especializadas ou cartórios. Tudo continuaria sob supervisão do Judiciário, mas a execução do dia a dia, o processo de ir atrás dos bens, avaliá-los, as etapas mais administrativas, elas sairiam do Judiciário para serem feitas fora dele. Isso precisaria de um projeto de lei, sem dúvida alguma, para ser bem discutido com a sociedade.

P. – O objetivo final é facilitar a execução?
MP – Exatamente. E a consequência disso, primeiro, é você recuperar mais do valor devido e, com isso, reduzir o risco de crédito. O que acontece no mercado de crédito é uma tragédia. Como bons e maus pagadores conseguem se esconder diante de um sistema de execução falho, o banco não sabe de antemão qual vai ser um e qual vai ser outro e vê risco nos dois.

P. – E o que acontece?
MP – Quem é bom pagador fala “com essa taxa de juros, não tem jeito, não vou conseguir pagar” e fica só o mau pagador.

P. – Aí tem um problema de seleção adversa horroroso e vira um ciclo vicioso que faz a taxa de juros de equilíbrio do mercado de crédito ser muito alta. O que a gente tem de fazer?
MP – Criar medidas para reduzir a inadimplência e fazer os maus pagadores serem identificados, e, na medida do possível, as dívidas que eles tiverem serem recuperadas para poder reduzir as taxas de juros de todo mundo. Aí você pode criar um ciclo virtuoso, porque mais gente vai entrar no mercado de crédito e as taxas médias vão cair.

P. – Essas medidas têm alguma influência de casos recentes, como Americanas e Oi?
MP – São medidas estruturais que devem ser tomadas pelo país em qualquer situação e [o cenário] reforça a necessidade delas. Essa é a função da legislação do mercado de capitais, evitar que casos como esse aconteçam, até porque eles têm impactos além do caso concreto.

P. – A inadimplência está subindo, as concessões diminuindo e fala-se em uma crise de crédito. Esse cenário assusta?
MP – É uma situação a ser monitorada com cuidado. Houve alguns eventos de crédito isolados, mas que podem ter repercussões maiores, como é o caso da Americanas, e soma-se a isso uma situação mundial que inspira cuidados. Crises como essas se espalham rápido, é preciso atenção e as autoridades precisam agir de maneira rápida e adequada quando necessário. Dito isso, a gente não vê nada aqui no Brasil desse tipo.

P. – Nada que soe um alarme?
MP – Não. O sistema bancário no Brasil é extremamente sólido. O que a gente vê aqui no Brasil é mais uma desaceleração na concessão de crédito. A gente não vê nenhum problema com a solidez do sistema, muito pelo contrário.

Raio-X

Marcos Barbosa Pinto, 45 anos
Secretário de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda. Graduado em Direito pela USP, mestre em Direito por Yale e em Economia e Finanças pela FGV, além de doutor em Direito pela USP. Foi sócio da Gávea Investimentos (fundada por Armínio Fraga). Integrou conselhos de empresas como Hering, ALL, Unidas, Energisa e BR Malls e foi consultor do BID. No serviço público, foi diretor da CVM e chefe de gabinete da presidência do BNDES (em 2006).

 

FONTE: CORREIO DO ESTADO