Instituído no Brasil Império em 1824 e extinto logo após a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, o Poder Moderador foi criado pelo imperador Dom Pedro I para se sobrepor aos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, situando-se hierarquicamente acima dos demais Poderes do Estado.

Passados 134 anos, eis que o tema volta à pauta com a discussão sobre a regulação das plataformas de internet propostas no texto do Projeto de Lei nº 2.630/2020, mais conhecido como PL das Fake News, no Congresso Nacional.

Afinal, mesmo que a base aliada ao presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), obtenha os votos necessários para a sua aprovação, uma série de pontos ainda deve ser alvo de debates futuros, uma vez que o projeto de lei prevê uma ampla regulamentação posterior.

Entre eles estão o detalhamento de como devem ser os relatórios de transparência e avaliação de risco das empresas, bem como os objetivos e as etapas do chamado “protocolo de segurança”.

Esse último será o mecanismo por meio do qual seria possível flexibilizar o Artigo 19 do Marco Civil da Internet, por tempo determinado sobre tema específico em caso de “dano iminente”.

A necessidade de detalhamento de normas por meio de resoluções e portarias é usual em legislações desse tipo, em especial por causa da rápida transformação tecnológica, para que a lei não fique obsoleta.

No caso do PL das Fake News, contudo, há uma peculiaridade no cenário: a ausência de definição do órgão que desempenhará uma série de tarefas previstas no texto e que serão objeto da regulamentação.

Para o cientista político Daniel Miranda, esta é uma questão difícil, pois o modelo de agências reguladoras que atuam no Brasil foi criado em decorrência dos processos de privatização de serviços públicos ou para regular mercados cujos funcionamentos são mais passíveis de supervisão, como a aviação, a telefonia, os transportes terrestres, entre tantos outros.

“No caso da proposta de lei atual, os grandes alvos são os provedores de internet e os provedores/responsáveis por redes sociais. Trata-se de uma atividade muito mais difícil de regular”, pontuou.

Ele explica que, enquanto as demais agências reguladoras acompanham serviços e processos físicos [viagens de avião] ou digitais [telefonia], empresas cujas atividades podem ser claramente delimitadas ao território nacional, no caso de uma agência de regulação visando coibir fake news terá o desafio de criar protocolos tão claros e objetivos quanto possíveis para monitorar e aplicar as sanções previstas em lei em caso de descumprimento.

“O desafio é maior, pois envolve a circulação de opiniões e ideias que, embora falsas, têm influência na política. Obviamente, quem é beneficiário não vai querer muita regulação e vai se opor”, reforçou Daniel Miranda.

Para o cientista político, não deverá ser o governo, por dois motivos: pela proposta atual, a atuação do governo nas redes sociais (via perfis oficiais) também será objeto de regulação; se o governo for o regulador e, em caso de as fake news o beneficiar, obviamente que a lei será morta nesse caso.

Ou, inversamente, poderá ser usada como instrumento de perseguição, como uma espécie de poder moderador.

“Então, provavelmente será algo nos moldes do conselho de transparência e responsabilidade na internet previsto na lei, ou seja, um comitê com representantes das empresas, do governo e da sociedade civil organizada. Porém, o maior desafio é haver parâmetros, protocolos, definições claras que pautem a atuação desse comitê ou seja lá quem for o responsável por aplicar a lei”, alertou o especialista.

RELATORIA

A intenção do relator do PL das Fake News, deputado federal Orlando Silva (PC do B-SP), era prever que o Executivo poderia criar uma entidade autônoma de supervisão e que ela deveria contar com independência técnica e administrativa.

No entanto, sem apoio dos demais parlamentares, ela foi retirada do texto e, com isso, o texto ficou com uma espécie de buraco, sem a definição de quem fará com que a lei se efetive.

E, além disso, abrindo brecha para que um órgão diretamente ligado ao governo, como um ministério, faça essa regulamentação.

Considerado pauta prioritária da gestão petista, o projeto ganhou status de urgência, mas teve a votação adiada diante da possibilidade concreta de que ele fosse rejeitado.

Além da ofensiva das big techs contra a proposta, houve desembarque de parlamentares de partidos que inicialmente haviam votado a favor da urgência.

Em entrevista à Folha de S.Paulo, Orlando Silva, que segue negociando o texto, disse que o caminho mais seguro seria delegar a supervisão da lei à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

Ele afirmou que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANDP), outra opção que vem sendo ventilada, teria poucos instrumentos para ter eficácia no curto prazo.

Bruno Bioni, diretor do Data Privacy Brasil e membro do Conselho Nacional de Proteção de Dados, destaca que o fato de ainda não haver definição sobre a entidade que terá esse papel é uma ausência grave para o debate, pois, substancialmente, a lei perde com isso, ficando quase sem alma.

Diante desse vácuo de poder, abriria ainda mais espaço para que, a exemplo do que tem feito o Ministério da Justiça por meio da Secretaria Nacional do Consumidor, o Poder Executivo se arvorasse da pauta, o que seria péssimo.

Para Bruno Bioni, uma autarquia seria a mais adequada por ter independência funcional, técnica e orçamentária ante o Executivo.

Em abril, no contexto da operação que busca combater conteúdos com apologia à violência nas escolas, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, assinou uma portaria estabelecendo regras para as plataformas sobre esse tema e atribuindo à Senacon a tarefa de instaurar processo administrativo para apuração e responsabilização das big techs.

Juliana Abrusio, sócia da área de Direito Digital e Proteção de Dados do Machado Meyer, também avalia que essa pasta não seria o órgão supervisor ideal da regulação, uma vez que já tem uma tendência, a defesa do consumidor.

O ideal para garantir a independência, segundo ela, é criar um modelo diferente do que existe em outros órgãos reguladores do Brasil. Juliana diz não ver problema no caso de os detalhes sobre o cumprimento da medida serem estabelecidos posteriormente.

Bruno Bioni é da opinião de que a Anatel, apesar de ser uma autarquia, não seria o órgão mais adequado. Ele argumenta que ela está ligada a um setor específico e voltada prioritariamente para falhas de mercado, ao contrário do PL 2.630, no qual teria que equilibrar direitos fundamentais.

Entre os itens a serem regulamentados posteriormente, de acordo com a versão atual do PL, estão pontos como as diretrizes de avaliação de “risco sistêmico”, relatório esse que deverá ser feito pelas empresas de tecnologia e que será uma dos elementos para análise sobre se elas estão ou não cumprindo o “dever de cuidado”.

Também seria mais bem definido em regras posteriores como funcionaria um eventual protocolo de segurança sobre as plataformas – período de 30 dias em que, diante da constatação de algum perigo iminente ou negligência da plataforma, ela passa a poder ser responsabilizada na Justiça, caso deixe de remover algum conteúdo ilegal sobre determinado tema depois de ser notificada.

 

FONTE: CORREIO DO ESTADO