O número de registros de armas de fogo catalogadas no Sistema Nacional de Armas (Sinarm) cresceu 793% em Mato Grosso do Sul, quando comparados os anos de 2018 e 2021.
Conforme os dados disponibilizados pela Polícia Federal, corporação responsável pelo sistema, em 2018, o Estado teve 618 novas aquisições de armamentos, contra o número expressivo de 5.524 em 2021.
Os dados são referentes à posse de armas tanto de cidadãos comuns quanto de policiais e guardas.
Entre as armas com maior porcentual de registro estão, respectivamente: pistolas, com 136 declarações em 2018 e 3.229 em 2021; revólveres, 135 registros em 2018 e 1.484 em 2021; e rifles, 16 novas entradas no sistema em 2018 e 316 no ano passado.
Conforme a Constituição Federal, na Lei nº10.826, instituída no dia 22 de dezembro de 2003, além do registro de armas de cidadãos comuns (restrito ao ambiente interno de estabelecimentos e residências), também são cadastradas pelo Sinarm armas institucionais, como as da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da Polícia Civil, das guardas prisionais, municipais e portuárias.
O sistema também cataloga armas de órgãos públicos cujos servidores tenham autorização legal para porte em serviço em razão das atividades que exercem.
FLEXIBILIZAÇÃO
Desde 2019, o País vive uma onda de flexibilização e incentivo ao registro e ao porte de armas. No início de 2019, o governo federal apresentou quatro projetos de lei, aprovados em 2021 com inúmeras ressalvas e ajustes, que alteraram o Estatuto do Desarmamento, por meio dos decretos de números 10.627, 10.628, 10.629 e 10.630 da Lei nº 10.826/2003, e facilitaram o acesso a armas de fogo no Brasil.
Entre as alterações propostas estavam: o aumento de quatro para seis armas de fogo que o cidadão comum pode adquirir, e oito para policiais, agentes prisionais, membros do Ministério Público e de tribunais; permissão para o porte simultâneo de duas armas; e caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) podem comprar até mil munições para cada arma de uso restrito (com maior controle do Estado) e cinco mil munições para cada arma de uso permitido.
Além disso, os CACs só precisaram da autorização do Exército para comprar armas acima do limite estabelecido em decreto anterior: cinco unidades de cada modelo para colecionadores, 15 unidades para caçadores e 30 para atiradores.
Uma das medidas não aprovadas foi a alteração da exigência de um profissional credenciado pela PF para emissão do laudo de aptidão psicológica para porte de armas.
O laudo passaria a ser assinado por psicólogos com registro nos conselhos regionais de Psicologia, sem a necessidade de curso de capacitação e treinamentos específicos para a tarefa.
O ex-professor e administrador aposentado Jonas Luiz de Mello Secchis, de 59 anos, tem registro de duas armas de fogo, uma pistola 380, de 15 tiros,
e outra calibre 38, de cinco tiros e cano curto.
Para ele, mesmo com o aumento dos registros, os processos ficaram mais difíceis, tanto para adquirir armas quanto para legalizá-las.
“Antigamente, os registros eram feitos pela Polícia Civil e era menos burocrático para comprar uma arma. Só eram checados os antecedentes criminais civil, militar e federal” pontuou.
Agora, Secchis explicou que, além dos procedimentos antigos, o cidadão solicitante do registro também precisa passar por um exame psicotécnico feito por um profissional aprovado pela PF.
“Depois, se aprovado, você vai para o exame de tiro com a arma que adquiriu e tem que efetuar 20 disparos de distâncias diferentes com índice de acerto acima de 60%”, disse.
APREENSÕES
Enquanto o número de registros aumentou, a taxa de apreensão de armas de fogo caiu. Os gráficos disponíveis no site da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) revelaram que a quantidade de armas apreendidas em 2018 foi de 946, já em 2021 o valor caiu para 787, redução de 16% em Mato Grosso do Sul.
Em Campo Grande, o índice registrado foi de 263 apreensões em 2018 e 252 em 2021. As armas que mais apareceram foram pistolas, com 95 apreensões, e revólveres, com 138.
FATOR PSICOLÓGICO
Para a psicóloga comportamental Isabela Romanini, a causa da conduta das pessoas que adquirem uma arma de fogo sempre será multifatorial. De acordo com a profissional, a desestruturação emocional causada pela Covid-19 pode ser um dos motivos para os episódios noticiados nos últimos anos, de crimes com caráter mais agressivo, intolerante e impulsivo.
“De fato, as pessoas estão, sim, mais abaladas. Elas apresentam níveis de ansiedade maiores, de intolerância, estão mais depressivas também. O que a gente tem certeza é que as condições emocionais estão muito abaladas e alteradas. A partir do momento que eu estou emocionalmente mais instável e tenho acesso a uma arma de fogo, provavelmente eu vou usá-la mais indiscriminadamente. Com certeza isso vai influenciar a maneira como me porto em uma briga, por exemplo”, disse.
A psicóloga ressalta que a origem do cenário de violência e aumento dos registros de armas de fogo pode ser exemplificada pelo reflexo da reclusão, do medo e da insegurança vividos durante a pandemia.
“Todos esses sentimentos continuam afetando a sensação de segurança, então, começam a gerar um ser humano com mais rivalidade. Eu começo a ter um olhar raivoso para a sociedade, competitivo. Começo a disputar espaço. Essas situações desencadeiam todas as emoções citadas. ‘Me fechou no trânsito, vou matar’”, explicou.
Sobre a questão das mortes por motivos torpes, Isabela acrescenta que, com acesso a armas de fogo, qualquer pessoa diante de uma forte carga emocional, situação imprevisível ou gatilho pode ser potencial atiradora.
“É muito complicado traçar um único perfil, porque muito se alterou com a pandemia. O que concluímos é que, independentemente dos índices de assassinatos e homicídios, o fato de se ter uma arma com certeza aumenta o índice de mortes por motivos fúteis e de suicídios também, porque a tentativa é muito mais letal, então, isso é facilitado pela arma de fogo“, evidenciou.
A psicóloga acrescenta que o Brasil é um país intolerante em sua totalidade, tanto no âmbito político e religioso quanto no sexual e racial. “Já trazemos isso dos nossos ancestrais, mas esses problemas foram intensificados pela pandemia”.
MOTIVO FÚTIL
Um exemplo recente ocorreu em Chapadão do Sul, quando Leandro Garcia Souza, 41 anos, foi alvejado com um tiro na cabeça pelo vizinho Donizete Ferreira Soares, 65 anos, no dia 24 de julho.
De acordo com a ocorrência registrada pela Delegacia de Polícia Civil de Chapadão do Sul, o caso foi catalogado como tentativa de homicídio qualificado por motivo fútil.
No momento do tiro, Leandro estava varrendo a calçada do atirador, razão pela qual Donizete teria efetuado o disparo. A vítima conseguiu falar com a polícia via WhatsApp, quando relatou o ocorrido.
O projétil ficou alojado na face da vítima, que foi socorrida e posteriormente transferida para a Santa Casa de Campo Grande, de onde teve alta no dia seguinte ao ocorrido.
“Eu estava varrendo a calçada dele e pedi para minha filha jogar umas pedras fora. Daí ele falou: ‘A calçada é minha’. Então, eu falei: ‘Nem a calçada você varre’. Então, ele entrou na casa e voltou armado”, contou.
Conforme o boletim médico encaminhado pela Santa Casa ao Correio do Estado, Leandro foi avaliado pelas equipes bucomaxilofacial, de neurocirurgia e otorrinolaringologia, porém, não sofreu intervenções cirúrgicas.
A Santa Casa pontuou que ele seguirá em acompanhamento com especialista em outro hospital.
Um dos vizinhos, Getúlio Donato, relatou aos policiais que só escutou os tiros e estava presente quando Leandro pediu para Donizete autorização para cortar um pé de jurubeba que estava plantado na calçada. Donato afirma que o atirador permitiu.
Na casa de Donizete Soares foi encontrada uma caixa de munição calibre 32 com cinco munições intactas e dois cartuchos usados. O acusado se entregou à polícia no dia 26 de julho. Ele foi autuado por posse ilegal de munição de arma de fogo e segue preso na delegacia de Chapadão do Sul.
FONTE: CORREIO DO ESTADO