Quase R$ 35 bilhões que deveriam ser destinados para a ciência de 2010 a 2021 ficaram “perdidos” no Orçamento federal, sendo metade disso só nos três primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro (PL). Corrigida pela inflação, o valor equivale hoje a cerca de R$ 45 bilhões.

O cálculo, inédito, foi apresentado pela pesquisadora Soraya Smaili, uma das criadoras do Centro de Estudos SoU_Ciência, ligado à Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), instituição que ela comandou, como reitora, por oito anos. O centro é apoiado pelo Instituto Serrapilheira.

Para chegar aos números, os pesquisadores ligados ao centro tiveram como base o valor arrecadado e pago pelo FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) desde 2010.

Criado por lei em 1969, o FNDCT é o principal instrumento público de financiamento de ciência, tecnologia e inovação do Brasil, alimentado por um fluxo contínuo de recursos obtidos por meio de tributos específicos.

Essa arrecadação tem aumentado nos últimos anos. Para se ter uma ideia, foram R$ 2,9 bilhões levantados pelo fundo em 2010 e R$ 10,3 bilhões no ano passado (em valores sem reajuste da inflação).

O problema é que o repasse total do FNDCT para a ciência diminuiu no mesmo período: passou de cerca de R$ 2,7 bilhões em 2010 para R$ 1,4 bilhão em 2021 (sem reajuste da inflação).

Desde 2010, de acordo com os dados levantados pelos cientistas no Siop (Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento), R$ 34,9 bilhões do FNDCT deixaram de ser repassados para a ciência brasileira. Destes, R$ 17,7 bilhões não foram repassados nos três anos iniciais do governo de Jair Bolsonaro (2019 a 2021). “Não sabemos exatamente o que aconteceu com esses recursos”, diz Smaili.

Os recursos federais destinados à ciência também foram ceifados de outras maneiras nos últimos anos. Segundo dados do mesmo Siop, em valores corrigidos pela inflação, as universidades federais perderam 45% da verba destinada às chamadas “outras despesas correntes”, como pagamento de água, de energia e de prestação de serviços de terceiros (como segurança e limpeza), por exemplo.

Esses cortes afetam também as bolsas de assistência estudantil para alunos de baixa renda, consideradas fundamentais para a manutenção desses estudantes na universidade pública. Os recursos foram de R$ 8,1 bilhões, em 2019, para R$ 4,4 bilhões, em 2022 (até setembro).

“Os estudos e levantamentos do Sou Ciência têm mostrado grande queda nos recursos das 68 universidades federais, especialmente entre 2019 e 2022, prejudicando laboratórios, pesquisadores e infraestrutura de pesquisa”, diz Smaili.

Ao mesmo tempo em que sofre cortes federais, a ciência brasileiro ganhou mais confiança da população no período. Um levantamento divulgado em março pelo mesmo Centro de Estudos SoU_Ciência, em parceria com o Instituto Ideia Big Data, mostrou que a confiança dos brasileiros em cientistas cresceu durante a pandemia de Covid.

Essa pesquisa mostrou que o conhecimento sobre temas científicos também aumentou. Quase metade dos 1.252 entrevistados lembrou o nome de uma instituição de pesquisa brasileira.

O Instituto Butantan e a Fiocruz foram os mais lembrados (respectivamente por 40,1% e 22,5% dos que conseguiram citar instituições).

Na última pesquisa nacional de percepção pública da ciência desse tipo, feita pelo CGEE (Centro de Gestão e Estudos Estratégicos)/MCTI, publicada em 2019, apenas 1 em cada 10 entrevistados sabia dizer o nome de uma instituição de pesquisa ou de um cientista.

Para Smaili, a pandemia aproximou a ciência da população de uma maneira sem precedentes, mas os cortes de recursos nas atividades científicas vão fazer a academia “perder esse bonde”. “Temos uma janela de oportunidade para engajar a sociedade pela ciência. Essa campanha tem de ser constante.”

Os dados foram apresentados pelo SoU_Ciência em uma mesa sobre política científica, que fechou o evento de comemoração de cinco anos do Instituto Serrapilheira, no Rio de Janeiro.

Nesses cinco anos, cerca de R$ 60 milhões foram investidos em ciência e divulgação científica pela instituição –que é privada. “É apenas uma gota no ecossistema científico. A verba pública é o coração do apoio à ciência”, diz Hugo Aguilaniu, presidente do instituto.

OUTRO LADO

A reportagem contatou os ministérios de Ciência e de Educação para comentar a redução de repasses do FNDCT e do Orçamento federal às universidades federais no atual governo, mas não recebeu resposta até a publicação deste texto.

As assessorias dos governos Luiz Lula da Silva (2003-2010) e Michel Temer (2016-2018) também não se manifestaram sobre os repasses do FNDCT nos respectivos mandatos.

Única a responder, a assessoria do governo Dilma Rousseff (2011-2016) afirmou, em nota, que a relevância do FNDCT foi plenamente reconhecida nos dois mandatos do presidente Lula, “que assegurou recursos crescentes para o fundo e o total descontingenciamento de seus aportes, reduzindo a zero a alíquota incidente sobre o mesmo, em 2010”.

“No entanto, nos anos que se seguiram, um cenário de incertezas, resultante da crise de 2008/2009, de fortes desequilíbrios no sistema financeiro internacional, da guerra cambial e do recrudescimento do protecionismo, afetou as metas de arrecadação do Governo Dilma”, afirmou na nota.

A nota ressalta, ainda, uma questão metodológica do estudo do SoU_Ciência em relação à diferença entre aplicação financeira e arrecadação. “O conceito de arrecadação tem relação com tributo, CIDE etc. Essa questão metodológica gera uma diferença em relação aos valores arrecadados.”

 

FONTE: CORREIO DO ESTADO