A ação da Polícia Federal que atingiu Jair Bolsonaro (PL) na última semana reforçou a avaliação de que o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), tem atuado de maneira similar à Lava Jato para fechar o cerco contra o ex-presidente e seus aliados.
Um ponto contestado por advogados ouvidos pela Folha é o fato de o magistrado avocar para si a responsabilidade de todos os processos sobre o tema e, assim, contornar o princípio constitucional do juiz natural, que só permite o acúmulo de ações com o mesmo magistrado quando há conexão entre as investigações e determina o sorteio de relatoria nas demais situações.
O debate sobre o assunto ganhou força após Moraes assumir a investigação da inserção de dados falsos da imunização de Bolsonaro e aliados no sistema do Ministério da Saúde. O argumento de Moraes é que o caso tem vínculo suficiente com uma apuração já em curso sobre uma campanha de desinformação contra as vacinas no governo anterior.
No caso da Lava Jato, o ex-juiz Sergio Moro, quando era responsável pela operação, ampliou a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba para praticamente todas as suspeitas de corrupção na Petrobras e seus envolvidos.
Inicialmente, o entendimento foi respaldado por instâncias superiores, principalmente quando a operação gozava de amplo apoio popular. Anos depois, essa competência ampliada gerou a nulidade de vários processos da Lava Jato, inclusive daquele que havia levado à condenação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Meses após o plenário do STF tornar o petista elegível novamente, em 2021, sob o argumento de que o caso não deveria ter tramitado em Curitiba sob o comando de Moro, Moraes adotou o mesmo entendimento para anular decisão da Lava Jato do Rio de Janeiro de tornar réu o ex-presidente Michel Temer.
Diferentemente do caso de Moro, no entanto, é muito pouco provável que as decisões de Moraes nesse sentido sejam anuladas. O magistrado pertence à última instância do Judiciário e conta com o respaldo da maioria dos colegas do STF.
Outra similaridade entre as atuações dos dois é a adoção de prisões preventivas alongadas. No caso do membro do Supremo, a crítica diz respeito às decisões contra o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, preso após os atos de vandalismo de 8 de janeiro por não ter agido para impedir a invasão às sedes dos três Poderes enquanto secretário de Segurança do DF –cargo que ocupava à época.
O magistrado mandou prendê-lo em 10 de janeiro e ele segue detido até hoje, quase quatro meses depois. A lei prevê dois tipos de prisão em casos em que ainda não há condenação definitiva: a temporária, que dura cinco dias prorrogáveis por mais cinco; e a preventiva, que não tem prazo definido.
Antes do caso de Torres, a preventiva por tempo indeterminado entrou na mira do STF na época da Lava Jato, também devido às decisões de Moro. Nos primeiros anos da operação, o magistrado mandou deter mais de 80 investigados, que ficaram presos, em média, por mais de nove meses.
Aos poucos, o Supremo passou a chamar a atenção para o assunto em tom crítico. O primeiro a falar do assunto foi o ministro Gilmar Mendes.
No início de 2017, ele afirmou em sessão da corte que o alongamento das preventivas “conflita com a jurisprudência” que o tribunal desenvolveu ao longo dos anos. Depois, aumentou o tom das críticas e passou a afirmar que Moro recorria à detenção por tempo indeterminado para forçar investigados a firmarem acordos de delação premiada. “Usava-se a prisão provisória como elemento de tortura”, disse Gilmar em 2019.
O advogado criminalista e mestre em direito público Raul Linhares afirma que a decretação de preventivas “em casos em que não há contemporaneidade das práticas ilícitas” e em situações que caberia a aplicação de medidas menos drásticas é “um dos tantos sinais de que há excessos na condução dessas investigações” do Supremo, além do fato de decisões serem tomadas na contramão da opinião da PGR (Procuradoria-Geral da República).
“Foi justamente a corrupção das regras processuais que conduziu ao trágico final da Lava Jato, hoje reconhecida pelas ilicitudes praticadas por Moro e pelos membros da força-tarefa do Ministério Público Federal. Também por esse motivo, devemos aprender com a história, para que essa história não se repita”, diz.
E prossegue: “Quando falamos de imparcialidade judicial, de excepcionalidade da prisão preventiva, de regras de competência, estamos nos referindo a conquistas civilizatórias que devem sempre balizar a administração da Justiça penal. Se um agente desse sistema de Justiça, especialmente um magistrado, corrompe tais postulados, a tendência é e deve ser o reconhecimento da ilicitude dessas práticas”.
Ele diz que foi “exatamente esse fenômeno que presenciamos na Lava Jato e que parece estar se repetindo nas recentes investigações sob relatoria de Moraes”.
O professor da FGV Direito de São Paulo Rubens Glezer, autor do livro “Catimba Constitucional”, também afirma que há uma semelhança nas atuações de Moro e de Moraes ao darem decisões heterodoxas que recorrem a “rupturas com as convenções jurídicas”.
“Existem expectativas gerais sobre como devem ser interpretadas as normas, como devem agir os magistrados, os limites do poder da sua atuação, e em ambos os casos eles são semelhantes e tentam fiar a sua licitude e legitimidade no controle pelos pares. No caso da Lava Jato pela confirmação pelo TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região), no qual havia alinhamento, e no caso do Moraes com maioria dos outros ministros. Essa é a grande semelhança”, afirma.
Ele diz, porém, que há uma “diferença de intenção no que ambos querem promover”. Na visão do professor, a Lava Jato tentou no seu discurso combater a corrupção do mundo político, focando no PT e tendo como ponto final a inviabilização de Lula. “Isso que dá para constatar depois de todos esses anos”, diz.
“Já Moraes quer desbaratinar um movimento de golpe de Estado que está próximo ao ex-presidente Jair Bolsonaro, um risco que ainda está presente. Essa tem sido uma parte da justificativa de fundamentação desse agir ainda heterodoxo do Moraes, por exemplo, com Torres.”

 

FONTE: CORREIO DO ESTADO